26.1.13

sobre precipitações

(...)

Quanto a mim, estava tão contente com a idéia de chegar à cidade em algumas horas, que não pude deixar também de rir-me do caráter original do pescador.

Conto-lhe estas cenas e as outras que se lhe seguiram com todas as suas circunstâncias por duas razões, minha prima.

A primeira é porque desejo que compreenda bem o drama simples que me propus traçar-lhe; a segunda é porque tenho tantas vezes repassado na memória as menores particularidades dessa história, tenho ligado de tal maneira o meu pensamento a essas reminiscências, que não me animo a destacar delas a mais insignificante circunstância; parece-me que se o fizesse, separaria uma parcela de minha vida.

Depois de duas horas de espera e de impaciência, embarquei nessa casquinha de noz, que saltou sobre as ondas, impelida pelo braço ainda forte e ágil do velho pescador.

Antes de partir fiz enterrar o meu pobre cavalo; não podia deixar assim exposto às aves de rapina o corpo desse nobre animal, que eu tinha roubado à afeição do seu dono, para imolá-lo à satisfação de um capricho meu.

Talvez lhe pareça isto uma puerilidade; mas a senhora é mulher, minha prima, e deve saber que, quando se ama como eu amava, tem-se o coração tão cheio de afeição, que espalha uma atmosfera de sentimento em torno de nós e inunda até os objetos inanimados, quanto mais as criaturas, ainda irracionais, que um momento se ligaram à nossa existência para realização de um desejo.



Capítulo 9

ERAM seis horas da tarde.

O sol declinava rapidamente e a noite, descendo do céu, envolvia a terra nas sombras desmaiadas que acompanhavam o ocaso.

Soprava uma forte viração de sudoeste, que desde o momento da partida retardava a nossa viagem; lutávamos contra o mar e o vento.

O velho pescador, morto de fadiga e de sono, estava exausto de forças; a sua pá, que a princípio fazia saltar sobre as ondas como um peixe o frágil barquinho, apenas feria agora a flor da água.

Eu, recostado na popa, e com os olhos fitos na linha azulada do horizonte, esperando a cada momento ver desenhar-se o perfil do meu belo Rio de Janeiro, começava seriamente a inquietar-me na minha extravagância e loucura.

À proporção que declinava o dia e que as sombras cobriam o céu, esse vago inexprimível da noite no meio das ondas, a tristeza e melancolia que infunde o sentimento da fraqueza do homem em face dessa solidão imensa de água e de céu, se apoderavam do meu espírito.

Pensava então que teria sido mais prudente esperar o dia seguinte e fazer uma viagem breve e rápida, do que sujeitar-me a mil contratempos e mil embaraços, que no fim de contas nada adiantavam.

Com efeito já tinha anoitecido; e, ainda que conseguíssemos chegar à cidade por volta de nove ou dez horas, só no dia seguinte poderia ver Carlota e falar-lhe.

De que havia servido, pois, todo o meu arrebatamento, toda a minha impaciência? Tinha morto um animal, tinha incomodado um pobre velho, tinha atirado às mãos cheias dinheiro, que poderia melhor empregar socorrendo algum infortúnio e cobrindo esta obra de caridade com o nome e a lembrança dela.

Concebia uma triste idéia de mim; no meu modo de ver então as coisas, parecia-me que eu tinha feito do amor, que é uma sublime paixão, apenas uma estúpida mania; e dizia interiormente que o homem que não domina os seus sentimentos, é um escravo, que não tem o menor merecimento quando pratica um ato de dedicação.

Tinha-me tornado filósofo, minha prima, e decerto compreenderá a razão.

No meio da baía, metido em uma canoa, à mercê do vento e do mar, não podendo dar largas à minha impaciência de chegar, não havia senão um modo de sair desta situação, e este era arrepender-me do que tinha feito.

Se eu pudesse fazer alguma nova loucura, creio piamente que adiaria o arrependimento para mais tarde, porém era impossível.

Tive um momento a idéia de atirar-me à água e procurar vencer a nado a distância que me separava dela; mas era noite, não tinha a luz de Hero para guiar-me, e me perderia nesse novo Helesponto.

Foi decerto uma inspiração do céu ou o meu anjo da guarda que me veio advertir que naquela ocasião eu nem sabia mesmo de que lado ficava a cidade.

Resignei-me, pois, e arrependi-me sinceramente.

Dividi com o meu companheiro algumas provisões que tínhamos trazido; e fizemos uma verdadeira colação de contrabandistas ou piratas.

Caí na asneira de obrigá-lo a beber uma garrafa de vinho do Porto, bebendo eu outra para acompanhá-lo e fazer-lhe as honras da hospitalidade. Julgava que deste modo ele restabeleceria as forças e chegaríamos mais depressa.

Tinha-me esquecido de que a sabedoria das nações, ou a ciência dos provérbios, consagra o princípio de que devagar se vai ao longe.

Acabada a nossa magra colação, o pescador começou a remar com uma força e um vigor que me reanimaram a esperança.

Assim, docemente embalado pela idéia de vê-la e pelo marulho das ondas, com os olhos fitos na estrela da tarde, que se ia sumindo no horizonte e me sorria como para consolar-me, senti a pouco e pouco fecharem-se-me as pálpebras, e dormi.

Quando acordei, minha prima, o sol derramava seus raios de ouro sobre o manto azulado das ondas: era dia claro.

Não sei onde estávamos; via ao longe algumas ilhas; o pescador dormia na proa, e ressonava como um boto.

A canoa tinha vogado à mercê da corrente; e o remo, que caira naturalmente das mãos do velho, no momento em que ele cedera à força invencível do sono, tinha desaparecido.

Estávamos no meio da baía, sem poder dar um passo, sem poder mover-nos.

Aposto, minha prima, que a senhora acaba de dar uma risada, pensando na cômica posição em que me achava; mas seria uma injustiça zombar de uma dor profunda, de uma angústia cruel como a que sofri então.

Os instantes, as horas, corriam de decepção em decepção; alguns barcos que passaram perto, apesar dos nossos gritos, seguiram o seu caminho, não podendo supor que com o tempo calmo e sereno que fazia, houvesse sombra de perigo para uma canoa que boiava tão levemente sobre as ondas.

O velho, que tinha acordado, nem se desculpava; mas a sua aflição era tão grande que quase me comoveu; o pobre homem arrancava os cabelos e mordia os beiços de raiva.

As horas correram assim nessa atonia do desespero. Sentidos em face um do outro, talvez culpando-nos mutuamente do que sucedia, não proferíamos uma palavra, não fazíamos um gesto.

Por fim veio a noite. Não sei como não fiquei louco, lembrando-me de que estávamos a 18, e que o paquete devia partir no dia seguinte.

Não era unicamente a idéia de uma ausência que me afligia; era também a lembrança do mal que ia causar-lhe, a ela, que, ignorando o que se passava, me julgaria egoísta, suporia que a havia abandonado e que ficara em Petrópolis, divertindo-me.

Aterrava-me com as conseqüências que poderia ter esse fato sobre a sua saúde tão frágil, sobre a sua vida, e me condenava já como assassino.

Lancei um olhar alucinado sobre o pescador e tive ímpetos de abraçá-lo e atirar-me com ele ao mar.

Oh! como sentia então o nada do homem e a fraqueza da nossa raça, tão orgulhosa de sua superioridade e do seu poder!

De que me serviam a inteligência, a vontade e essa força invencível do amor, que me impelia e me dava coragem para arrostar vinte vezes a morte?

Algumas braças d'água e uma pequena distância me retinham e me encadeavam naquele lugar como a um poste; a falta de um remo, isto é, de três palmos de madeira, criava para mim o impossível; um círculo de ferro me cingia, e para quebrar essa prisão, contra a qual toda a minha razão era impotente, bastava-me que fosse um ente irracional.

A gaivota, que frisava as ondas com a ponta de suas asas brancas; o peixe, que fazia cintilar um momento seu dorso de escamas à luz das estrelas; o inseto, que vivia no seio das águas e plantas marinhas, eram reis dessa solidão, na qual o homem não podia sequer dar um passo.

Assim, blasfemando contra Deus e sua obra, sem saber o que fazia nem o que pensava, entreguei-me à Providência; embrulhei-me no meu capote, deitei-me e fechei os olhos, para não ver a noite adiantar-se, as estrelas empalidecerem e o dia raiar.

Tudo estava sereno e tranqüilo; as águas nem se moviam; apenas sobre a face lisa do mar passava, uma aragem tênue, que se diria hálito das ondas adormecidas.

De repente, pareceu-me sentir que a canoa deixara de boiar à discrição e singrava lentamente; julgando que fosse ilusão minha, não me importei, até que um movimento contínuo e regular convenceu-me.

Afastei a aba do capote e olhei, receando ainda iludir-me; não vi o pescador; mas a alguns passos da proa percebi os rolos de espuma que formavam um corpo, agitando-se nas ondas.

Aproximei-me e distingui o velho pescador, que nadava, puxando a canoa por meio de uma corda que amarrara à cintura, para deixar-lhe os movimentos livres.

Admirei essa dedicação do pobre velho, que procurava remediar a sua falta por um sacrifício que eu supunha inútil: não era possível que um homem nadasse assim por muito tempo.

Com efeito, passados alguns instantes, vi-o parar e saltar ligeiramente na canoa como temendo acordar-me; a sua respiração fazia uma espécie de burburinho no seu peito largo e forte,

Bebeu um trago de vinho e com o mesmo cuidado deixou-se cair n'água e continuou a puxar a canoa.

Era alta noite quando nesta marcha chegamos a uma espécie de praia, que teria quando muito duas braças. O velho saltou e desapareceu.

Fitando a vista nas trevas, vi uma claridade, que não pude distinguir se era fogo, se luz, senão quando uma porta, abrindo-se, deixou-me ver o interior de uma cabana.

O velho voltou com um outro homem, sentaram-se sobre uma pedra e começaram a falar em voz baixa. Senti uma grande inquietação; na verdade, minha prima, só me faltava, para completar a minha aventura, uma história de ladrões.

A minha suspeita, porém, era injusta; os dois pescadores estavam à espera de dois remos que lhes trouxe uma mulher, e imediatamente embarcaram e começaram a remar com uma força espantosa.

A canoa resvalou sobre as ondas, ágil e veloz como um desses peixes de que havia pouco invejava a rapidez.

Ergui-me para agradecer a Deus, ao céu, às estrelas, às águas, a toda a natureza enfim, o raio de esperança que me enviavam.

Uma faixa escarlate já se desenhava no horizonte; o oriente foi-se esclarecendo de gradação em gradação, até que deixou ver o disco luminoso do sol.

A cidade começou a erguer-se do seio das ondas, linda e graciosa, como uma donzela que, recostada sobre um monte de relva, banhasse os pés na corrente límpida de um rio.

A cada movimento de impaciência que eu fazia, os dois pescadores dobravam-se sobre os remos e a canoa voava. Assim nos aproximamos da cidade, passamos entre os navios, e nos dirigimos à Glória, onde pretendia desembarcar, para ficar mais próximo de sua casa.

Em um segundo tinha tomado a minha resolução; chegar, vê-la, dizer-lhe que a seguia, e embarcar-me nesse mesmo paquete em que ela ia partir.

Não sabia que horas eram; mas há pouco havia amanhecido; tinha tempo para tudo, tanto mais que eu só precisava de uma hora. Um crédito sobre Londres e a minha mala de viagem eram todos os meus preparativos; podia acompanhá-la ao fim do mundo.

Já via tudo cor-de-rosa, sorria à minha ventura e gozava da alegre surpresa que ia causar-lhe, a ela que já não me esperava.

A surpresa, porém, foi minha.

Quando passava diante de Villegaignon, descobri de repente o paquete inglês : as pás se moviam indolentemente e imprimiam ao navio essa marcha vagarosa do vapor, que parece experimentar as suas forças, para precipitar-se a toda a carreira.

Carlota estava sentada sob a tolda, com a cabeça encostada ao ombro de sua mãe e com os olhos engolfados no horizonte, que ocultava o lugar onde tínhamos passado a primeira e última hora de felicidade.

Quando me viu, fez um movimento como se quisesse lançar-se para mim; mas conteve-se, sorriu-se para sua mãe, e, cruzando as mãos no peito, ergueu os olhos ao céu, como para agradecer a Deus, ou para dirigir-lhe uma prece. 

(...)

5 Minutos - José de Alencar

14.1.13

sobre as coisas

exceção é uma forma de jogo
das regras

se a bola branca cair junto com qualquer bola
(que não seja a 8)
você não perde o jogo, só a jogada
o que já é ruim o suficiente
se você é um péssimo jogador

12.1.13

diário de um necropsista

a mulher queria a pulseira que o homem carregava, parecia coisa cara. diz que era para guardar, mas não sei não - eu venderia - e olha, aquela mulher me encheu a paciência.

quando chegou a vez de cortar o morto para meus afazeres, quem disse que o fecho da tal da pulseira abria?

- saco!

e com a mulher me enchendo.. me enchendo.. me enchendo.., fiz o que qualquer um faria para ela para ela sair da minha cola. cortei a mão do cara e entreguei a pulseira. depois a funerária que se vire pra esconder.

11.1.13

pense depois de ler

caso passasse 'pensar' em sua cabeça
o que pensaria?

que não penso.

no silêncio breve após suas perguntas
minha estupidez cala
aflita,

não falo, não penso
justifico assim
o talvez injustificável

não penso, não falo
mas faço.

e fazer é a estupidez do primeiro ato.